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domingo, 1 de julho de 2012

Não raras vezes nos deparamos com operações realizadas pelos guardas municipais de trânsito em conjunto com a Brigada Militar, com o objetivo de fiscalizar os documentos dos veículos que estão circulando e a habilitação de seus motoristas, objetivando o cumprimento às leis de trânsito. Previsivelmente e infelizmente, acontece o famoso, inaceitável e covarde “você sabe com quem está falando?”, mais conhecido como “carteiraço”. Esta forma de comportamento é o que melhor comprova nossa estrutura social hierarquizada, onde alguns que possuem “carteira” de delegado, procurador, juiz, desembargador, deputado, prefeito, vereador, médico, advogado, dentista, diretor de universidade, simples eletistas que pertencem a famílias tradicionais e muitos outros, impõem sua surreal “supremacia” sobre os cidadãos normais, os únicos em que a igualdade formal, prevista na Constituição, é realmente aplicada.
Presenciamos pessoalmente e assistimos através da mídia, inúmeros casos deploráveis de ”você sabe com que está falando?”, em especial contra muitos guardas municipais e policiais, que reclamam há anos por melhores condições de trabalho (merecidamente!). É de se ressaltar que os que se intitulam seres acima da lei e que seriam os protagonistas únicos dos “carteiraços” não estão mais sozinhos, pois uma nova forma de abuso surge: são os “carteiraços” de mulheres, filhos, sobrinhos, vizinhos, amigos e até mesmo amantes de pessoas que se julgam importantes e que de tão prepotentes acreditam que sua posição pode servir como manto de proteção a outros. Na verdade há, diariamente, uma chuva de indiretas e promessas de futuras retaliações, até mesmo ameaças à integridade física de pessoas que tentam aplicar a lei igualitariamente, como os heróicos “guardinhas” e “brigadianos”. Atitude arcaica presente no nosso cotidiano e muitas vezes um comportamento que anuímos por omissão.    
Tais acontecimentos na capital das missões, leva-nos a recordar o que aconteceu com a guarda de trânsito Rosimeri Dionísio, no Rio de Janeiro, conforme matéria publicada pelo jornal “O Globo”, em 11 de julho de 2002. Ao fazer cumprir a lei, a guarda municipal acabou recebendo uma punição inusitada: foi parar na delegacia e autuada depois de multar o carro do filho de um desembargador - um Golf - e mais sete veículos estacionados em local proibido (Rua Lacerda Coutinho, em Copacabana). O desembargador era o renomado jurista Eduardo Mayr, da 7ª Câmara Criminal, o qual alegou desacato à autoridade e abuso de poder para fazer o registro de ocorrência na polícia contra a guarda de trânsito. De acordo com o “O Globo”[1] Rosimeri, ao sair de casa para trabalhar e vê-la multando o carro de seu filho, Mayr pediu-lhe que retirasse as multas, alegando que a rua era residencial e os automóveis pertenciam aos moradores, mesmo sendo explícitas as placas de estacionamento proibido. Como ela se negou a retirar as multas, mesmo depois de ele se identificar como desembargador, Mayr resolveu chamar a Polícia Militar, que levou a guarda para a 12° DP (Copacabana). Antes, ele exigiu que ela lhe entregasse o talonário com todas as multas aplicadas — um documento público — e se recusou a devolvê-lo até mesmo ao delegado.
De acordo com as leis vigentes, além de o “você sabe com quem está falando?” poder ser tipificado como desacato (art. 331, do Código Penal), pode também configurar como abuso de autoridade (Lei 4.898/65). Foi nesta lógica a manifestação sobre o fato acima narrado do advogado Luiz Paulo Viveiros de Castro, especialista em Direito Administrativo, explicando que o desembargador cometeu apropriação indébita (dos talonários), abuso de poder e desacato à autoridade, devendo “ser preso em flagrante”, pois estava fora de suas funções, não sendo autoridade, mas sim um cidadão comum e igual a todos perante a lei (caput do art. 5°/CF).
Rosimeri, ao se manifestar do acontecido, desabafou:— Eu estava exercendo a minha função. Estava ali como profissional. Nitidamente indignada, a guarda de trânsito declarou que iria processar o desembargador, haja vista que estava exercendo sua função dentro dos limites legais. Dias depois, foi convidada pelo prefeito Cesar Maia para um almoço, no qual ele prestou solidariedade à guarda. Segundo o prefeito, ela cumpriu seu dever e impôs a lei.
Acontecimento semelhante também ocorreu recentemente, no dia 21 de outubro de 2004, quando a Polícia Federal prendeu em flagrante o publicitário Duda Mendonça, o Vereador do PT Jorge Babu e mais 200 pessoas por estarem fazendo apostas em brigas de galo, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro[2]. O “você sabe com quem está falando?” novamente surtiu efeito, pois, após terem sido indiciados (Jorge Babu e Duda Mendonça) pelos crimes de formação de quadrilha, maus-tratos e apologia ao crime, pelo delegado Antonio Carlos Rayol, este foi imediatamente afastado da Polícia Federal do Meio Ambiente e os dois Agentes Federais que efetivaram as prisões foram, estranhamente, afastados da Delegacia do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (DEMAPH) para o interior do Rio de Janeiro.   
Se este tipo de atitude, de se sobrepor às leis e se considerar imune à ordem social, é comumente presenciado no comportamento de algumas autoridades de 1° escalão, também não é de se espantar que autoridades do alto escalão dos Governos Federais e Estaduais sejam as protagonistas de tais barbáries contra a Constituição e a sociedade. Citemos a atitude do deputado federal Waldomiro Fioravante, que, conforme sitePolícia e Segurança Pública” (10/02/05), em texto de Rosane Oliveira (“A cultura do Carteiraço”), desrespeitou uma via preferencial em Erechim, atropelou um casal de motoqueiros e não quis fazer o exame de teor alcoólico, pois não queria se sentir humilhado (“pobre” homem!). O deputado aplicou o brasileiríssimo “carteiraço”, invocando a imunidade parlamentar num dos raros casos em que ela não se aplica plenamente. Em 1997, ao ser abordado por policiais rodoviários na RS-239, em Campo Bom, o ex-deputado Paulo Ritzel, também apelou ao “carteiraço” e desacatou patrulheiros rodoviários com palavrões impublicáveis. Ritzel teve azar (sorte nossa!), porque os patrulheiros inteligentemente gravaram todo o desacato[3].
 O comportamento de Rosimere e dos Agentes Federais supramencionados, bem como do Delegado da Polícia Federal não é normal quando o “você sabe com quem está falando?” está presente, tendo em vista que na grande maioria dos casos, quando nos deparamos com um “carteiraço” nos sentimos oprimidos e cedemos, deixamos que a arrogância alheia se sobreponha à sensatez e muitas vezes à legalidade. Já é hora de compreendermos que não vivemos mais em uma ditadura, vivemos numa das 10 maiores democracias do mundo, não temos mais espaço para autoritarismos e muito menos desrespeitos que passam de simples indiretas de represálias, resultando até mesmo em agressão física.
É de se destacar o trabalho de servidores como os muitos guardas municipais de trânsito e policiais que vencem muitos obstáculos para exercer suas funções, devendo receber a admiração da sociedade, mas acima de tudo, nosso respeito. Respeito este que não encontramos, por exemplo, no comportamento de muitos jovens (o “carteiraço” não vem só das autoridades) que encaram as autoridades responsáveis pela segurança de nossas cidades como inimigos ou até mesmo como subalternos. Não é raro nos depararmos com jovens, principalmente de classe média e alta, passando por cima das leis e das autoridades que por elas zelam. São homens e mulheres que cumprem com seus deveres, dignos de nossa atenção e, precipuamente, nossa consideração e solidariedade.        
Já está mais do que na hora de dar um basta a tanta hipocrisia, não cabe, por exemplo, a uma autoridade do alto escalão se sobrepor à lei, cabe sim respeitá-la e servir de modelo para que o país passe da ilegalidade para a normalidade constitucional. Além de crescimento econômico e social, devemos saber que tudo passa por uma mudança interna, pessoal e consciente, pequenas atitudes podem trazer grandes mudanças. Devemos fazer um pacto pela legalidade, onde saibamos contrabalançar nossos deveres com os nossos direitos.

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EU SOU SIMPLESMENTE LINA.

PRECONCEITO

MEUS AMIGOS Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril. Oscar Wilde