Não raras vezes
nos deparamos com operações realizadas pelos guardas municipais de trânsito em
conjunto com a Brigada Militar, com o objetivo de fiscalizar os documentos dos
veículos que estão circulando e a habilitação de seus motoristas, objetivando o
cumprimento às leis de trânsito. Previsivelmente e infelizmente, acontece o
famoso, inaceitável e covarde “você
sabe com quem está falando?”, mais conhecido como “carteiraço”. Esta
forma de comportamento é o que melhor comprova nossa estrutura social hierarquizada,
onde alguns que possuem “carteira” de delegado, procurador, juiz,
desembargador, deputado, prefeito, vereador, médico, advogado, dentista,
diretor de universidade, simples eletistas que pertencem a famílias
tradicionais e muitos outros, impõem sua surreal “supremacia” sobre os cidadãos
normais, os únicos em que a igualdade formal, prevista na Constituição, é
realmente aplicada.
Presenciamos
pessoalmente e assistimos através da mídia, inúmeros casos deploráveis de ”você
sabe com que está falando?”, em especial contra muitos guardas municipais e
policiais, que reclamam há anos por melhores condições de trabalho
(merecidamente!). É de se ressaltar que os que se intitulam seres acima da lei
e que seriam os protagonistas únicos dos “carteiraços” não estão mais sozinhos,
pois uma nova forma de abuso surge: são os “carteiraços” de mulheres, filhos,
sobrinhos, vizinhos, amigos e até mesmo amantes de pessoas que se julgam
importantes e que de tão prepotentes acreditam que sua posição pode servir como
manto de proteção a outros. Na verdade há, diariamente, uma chuva de indiretas
e promessas de futuras retaliações, até mesmo ameaças à integridade física de
pessoas que tentam aplicar a lei igualitariamente, como os heróicos
“guardinhas” e “brigadianos”. Atitude arcaica presente no nosso cotidiano e
muitas vezes um comportamento que anuímos por omissão.
Tais acontecimentos
na capital das missões, leva-nos a recordar o que aconteceu com a guarda de
trânsito Rosimeri Dionísio, no Rio de Janeiro, conforme matéria publicada pelo
jornal “O Globo”, em 11 de julho de 2002. Ao fazer cumprir a lei, a guarda
municipal acabou recebendo uma punição inusitada: foi parar na delegacia e
autuada depois de multar o carro do filho de um desembargador - um Golf - e
mais sete veículos estacionados em local proibido (Rua Lacerda Coutinho, em
Copacabana). O desembargador era o renomado jurista Eduardo Mayr, da 7ª Câmara
Criminal, o qual alegou desacato à autoridade e abuso de poder para fazer o
registro de ocorrência na polícia contra a guarda de trânsito. De acordo com o
“O Globo”[1]
Rosimeri, ao sair de casa para trabalhar e vê-la multando o carro de seu filho,
Mayr pediu-lhe que retirasse as multas, alegando que a rua era residencial e os
automóveis pertenciam aos moradores, mesmo sendo explícitas as placas de
estacionamento proibido. Como ela se negou a retirar as multas, mesmo depois de
ele se identificar como desembargador, Mayr resolveu chamar a Polícia Militar,
que levou a guarda para a 12° DP (Copacabana). Antes, ele exigiu que ela lhe entregasse
o talonário com todas as multas aplicadas — um documento público — e se recusou
a devolvê-lo até mesmo ao delegado.
De acordo com as
leis vigentes, além de o “você sabe
com quem está falando?” poder ser tipificado como desacato (art. 331, do
Código Penal), pode também configurar como abuso de autoridade (Lei 4.898/65).
Foi nesta lógica a manifestação sobre o fato acima narrado do advogado Luiz
Paulo Viveiros de Castro, especialista
em Direito Administrativo, explicando que
o desembargador cometeu apropriação indébita (dos talonários), abuso de poder e
desacato à autoridade, devendo “ser preso em flagrante”, pois estava
fora de suas funções, não sendo autoridade, mas sim um cidadão comum e igual a
todos perante a lei (caput do art. 5°/CF).
Rosimeri, ao se
manifestar do acontecido, desabafou:— Eu estava exercendo a minha função.
Estava ali como profissional. Nitidamente indignada, a guarda de trânsito
declarou que iria processar o desembargador, haja vista que estava exercendo
sua função dentro dos limites legais. Dias depois, foi convidada pelo prefeito
Cesar Maia para um almoço, no qual ele prestou solidariedade à guarda. Segundo
o prefeito, ela cumpriu seu dever e impôs a lei.
Acontecimento
semelhante também ocorreu recentemente, no dia 21 de outubro de 2004, quando a
Polícia Federal prendeu em flagrante o publicitário Duda Mendonça, o Vereador
do PT Jorge Babu e mais 200 pessoas por estarem fazendo apostas em brigas de
galo, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro[2].
O “você sabe com quem está falando?” novamente surtiu efeito, pois, após terem
sido indiciados (Jorge Babu e Duda Mendonça) pelos crimes de formação de
quadrilha, maus-tratos e apologia ao crime, pelo delegado Antonio Carlos Rayol,
este foi imediatamente afastado da Polícia Federal do Meio Ambiente e os dois
Agentes Federais que efetivaram as prisões foram, estranhamente, afastados da
Delegacia do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (DEMAPH) para o interior do
Rio de Janeiro.
Se este tipo de
atitude, de se sobrepor às leis e se considerar imune à ordem social, é comumente
presenciado no comportamento de algumas autoridades de 1° escalão, também não é
de se espantar que autoridades do alto escalão dos Governos Federais e
Estaduais sejam as protagonistas de tais barbáries contra a Constituição e a
sociedade. Citemos a atitude do deputado federal Waldomiro Fioravante, que,
conforme site “Polícia e Segurança Pública” (10/02/05), em texto de Rosane
Oliveira (“A cultura do Carteiraço”),
desrespeitou uma via preferencial em Erechim, atropelou um casal de motoqueiros
e não quis fazer o exame de teor alcoólico, pois não queria se sentir humilhado
(“pobre” homem!). O deputado aplicou o brasileiríssimo “carteiraço”, invocando
a imunidade parlamentar num dos raros casos em que ela não se aplica
plenamente. Em 1997, ao ser abordado por policiais rodoviários na RS-239,
em Campo Bom, o ex-deputado
Paulo Ritzel, também apelou ao “carteiraço” e desacatou patrulheiros
rodoviários com palavrões impublicáveis. Ritzel teve azar (sorte nossa!),
porque os patrulheiros inteligentemente gravaram todo o desacato[3].
O comportamento de Rosimere e dos Agentes
Federais supramencionados, bem como do Delegado da Polícia Federal não é normal
quando o “você sabe com quem está falando?” está presente, tendo em vista que
na grande maioria dos casos, quando nos deparamos com um “carteiraço” nos
sentimos oprimidos e cedemos, deixamos que a arrogância alheia se sobreponha à
sensatez e muitas vezes à legalidade. Já é hora de compreendermos que não
vivemos mais em uma ditadura, vivemos numa das 10 maiores democracias do mundo,
não temos mais espaço para autoritarismos e muito menos desrespeitos que passam
de simples indiretas de represálias, resultando até mesmo em agressão física.
É de se destacar
o trabalho de servidores como os muitos guardas municipais de trânsito e
policiais que vencem muitos obstáculos para exercer suas funções, devendo
receber a admiração da sociedade, mas acima de tudo, nosso respeito. Respeito
este que não encontramos, por exemplo, no comportamento de muitos jovens (o
“carteiraço” não vem só das autoridades) que encaram as autoridades
responsáveis pela segurança de nossas cidades como inimigos ou até mesmo como
subalternos. Não é raro nos depararmos com jovens, principalmente de classe
média e alta, passando por cima das leis e das autoridades que por elas zelam.
São homens e mulheres que cumprem com seus deveres, dignos de nossa atenção e,
precipuamente, nossa consideração e solidariedade.
Já está mais do
que na hora de dar um basta a tanta hipocrisia, não cabe, por exemplo, a uma
autoridade do alto escalão se sobrepor à lei, cabe sim respeitá-la e servir de
modelo para que o país passe da ilegalidade para a normalidade constitucional.
Além de crescimento econômico e social, devemos saber que tudo passa por uma
mudança interna, pessoal e consciente, pequenas atitudes podem trazer grandes
mudanças. Devemos fazer um pacto pela legalidade, onde saibamos contrabalançar nossos
deveres com os nossos direitos.
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