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domingo, 7 de novembro de 2010

Cascas e Polpas. Em cada taca de fel que a vida me deu, a última gota era de mel. No fim de cada subida íngreme que tive que escalar, encontrei uma planície verdejante. Cada amigo que perdi na neblina do entardecer, encontrei-o na luz da aurora. E quantas vezes escondi meu sofrimento e meu amargor sob o véu da resignação, acreditando que havia mérito nisso. Mas quando eu retirei o véu, achei que o sofrimento de transformara em satisfação e o amargor em alegria. E quantas vezes acompanhei meu amigo ao mundo das aparências, julgando-o rude e ignorante. Mas assim que desvendei os mistérios da vida, compreendi que era eu o agressor e ele, o sábio e o cavaleiro. E quantas vezes, embriagado de egoísmo, comparei-me ao cordeiro e comparei o meu companheiro ao lobo. Mas, quando voltei a mim mesmo, ele era homem e eu outro homem. Eu e vos, meus semelhantes, somos fascinados pelas aparências e cegos às essências. Se um de nos tropeça, dizemos “é um decaído”. Se se atrasa, dizemos “é um indolente”. Se tartamudeia, dizemos “ é um mudo”. Se suspira dizemos ”é um doente”. Eu e vós, apaixonados pelas cascas do “EU” e de “VÓS”. Por isso, não percebemos o que o espírito escondeu em “MIM” e em “VÓS”. E que podemos fazer para que nossa vaidade não nos distraia de nossa verdade? Digo que aquilo que vemos com nossos próprios olhos é apenas uma nuvem que nos esconde o essencial. E o que ouvimos com nossos ouvidos é um mero barulho que nos distrai do sentido profundo das coisas. É nossa visão que realmente vê. É nosso coração que realmente ouve. Sigamos sua orientação. Quando cruzarmos com um policial que leva um homem á cadeia, não presumamos qual dos dois é o criminoso. E quando virmos dois homens, um ensangüentado e outro com manchas de sangue nas mãos, não concluamos qual é o agredido e qual o agressor. E se ouvirmos um homem cantar e outro chorar, paremos antes de concluir qual dos dois é o mais feliz. Não, meu amigo, não ates as aparências às realidades. E não julgues da essência de um homem pelas suas palavras e seu comportamento. Talvez visites no mesmo dia um castelo e um casebre, e saias do primeiro com veneração e do segundo com comiseração. Mas se pudesses rasgar o véu das aparências, tecido por seus sentidos, tua veneração se transformaria em comiseração e tua comiseração em veneração. Talvez encontres, entre o despertar e o ocaso de te dia, um homem que fala como se a tempestade se exprimisse em sua voz e os exércitos se manifestam em seus gestos, e outro que fala com palavras tímidas e entrecortadas. E talvez atribuas o heroísmo ao primeiro e a covardia ao segundo. Mas, se os reencontrasse quando a vida os chama para enfrentar os obstáculos ou sacrifícios a um ideal, saberias que a soberba briosa não é coragem e a timidez calada não é covardia. E talvez olhes pela tua janela e vejas uma freira e uma prostituta que andam entre os transeuntes, e concluas intempestivamente: “ que nobreza naquela e que indignidade nesta!”. Mas se fechasses os olhos e escutasses o éter falar, ouvirias uma voz te dizer: “ Aquela Me procura pela oração e esta Me procura pelo sofrimento, e na alma de cada uma delas, há um refugio para Minha alma.” E talvez viajes pelo mundo à procura do que chamas de civilização e progresso e entres numa cidade feita de edifícios altos e palácios suntuosos e institutos modernos e avenidas largas, enquanto seus habitantes, vestidos com esmero, estão em movimento permanente: uns a cavarem a terra, outros a subirem no espaço, outros a dominarem o raio, outros a investigarem os ventos. Dias depois, talvez chegues à outra cidade de casas humildes e ruas estreitas, enlameada nos dias de chuva, empoeirada nos dias de sol, habitada por um povo primitivo e lento que te olha, parecendo olhar para algo além de ti; e talvez abandones esta cidade, desgostado, pensando:” a diferença que eu vi naquela cidade e nesta é a diferença entre a vida e a agonia: lá uma forca e seu fluxo, aqui a fraqueza e seu refluxo; lá uma atividade que produz primavera e verão, aqui, uma indolência que produz outono e inverno; lá, a ambição e a juventude que dança num jardim, aqui, a decrepitude é velhice deitada ao pó. Mas se puderes olhar para as duas cidades com a luz de Deus, vê-las-ias duas árvores iguais no mesmo vergel. E, meditando, talvez concluísses que o que te apareceu progresso na primavera, nada mais é que borbulhas luminosas e efêmeras, e que o que te pareceu mediocridade na outra é o reflexo de uma riqueza interior, meditativa e permanente. Não, a vida não vale pelas suas aparências, mas pelas suas essências. Os frutos não valem pelas suas cascas, mas pela sua polpa. Os homens não valem pelos seus rostos, mas pelos seus corações. E a religião não vale pelo que se manifesta nos templos e pelos seus ritos e tradições, mas pelo que se esconde nas almas e nas intenções. A arte não esta nas melodias de uma canção ou na vibração verbal de um poema ou nas cores e nas formas de um quadro. A arte esta nas distancias silenciosas e inspiradoras que separam as notas agudas e graves de uma canção e no que um poema transmite ao coração do que permaneceu inexpresso na alma do poeta. A arte esta no que um quadro nos permite imaginar para alem de suas dimensões. Não, meu irmão, as noites e os dias não estão na suas aparências. E eu que na procissão das noites e dos dias estou nestas palavras que te dirijo, mas no que minhas palavras refletem das minhas profundezas mudas. Não me consideres um ignorante até que examines essas profundezas e não me consideres um gênio antes de despir-me das minhas aparências. Não me digas: “É um generoso”, antes de compreender os motivos de minha generosidade. Não creias em meu amor até sentir-lhe o calor, e não me acuses de frieza antes de tocar minhas feridas sangrentas.

gibran khalil gibran

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vocêsabeessa

EU SOU SIMPLESMENTE LINA.

PRECONCEITO

MEUS AMIGOS Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice! Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril. Oscar Wilde